óxido nitroso


Usuário X (vinte e dois de maio de dois mil e vinte e dois)

Já a alguns anos faço parte de um clube de livros. Não apenas livros em Times New Roman em preto sobre papel branco unidos com cola. Muitos livros são especiais. Muitos ilustrados. Outros clássicos com capas exclusivas. Outros com tipografias esperimentais. Alguns livros são até ilegíveis, porém admiráveis de fitar. Em suma, uma experiência impar para olhos, mãos, mentes e almas.
Para adquirir tais livros illustres existe uma loja com acesso digital via internet. Nome e senha requeridos.
Em um certo dia eu encontrei no catálogo um livro que me chamara a atenção e assediara minha curiosidade. Decidi adquiri-lo. Ao tentar acessar minha conta virtual deparei-me com uma dificuldade cognitiva de meu lapso mental. Esqueci minha senha? Pode ser? De antemão fiz o requerimento de nova senha. Minha surpresa: o nome para acesso não existia no banco de datas. Depois de várias tentativas e combinações com pseudônimos, apelidos, datas de nascimentos, datas de óbitos, decidi telefonar com o serviço. Depois de ilustrar meu problema e comparar meus dados pessoais, o endereço de meu correio eletrônico foi transmitido para outro departamento da loja virtual, que agora virara uma loja análoga.
Cinco minutos depois deste telefonema recebi através de meu correio eletrônico informações sobre como acessar a loja virtual para finalizar minha encomenda.
E que surpresa. Estava ali escrito em Arial, 16pt, em preto sobre branco no monitor, sem charme e sem adornos, que meu „nome do usuário“ era „Facundo“. Quê? Minha surpresa era agora gargalhadas em sala vazia. Mas esse é o meu nome de verdade.
FaTe


Contra a Mão

Sérgio Solanales é artista plástico. Sérgio Solanales é destro. Desde que ele deu-se conta de seu nascimento como artista plástico ele percebeu o significado da engenhosidade e ingenuidade de suas mãos, que muitas vezes pareciam saber o que fazer, como agir, como tocar, antes mesmo que seu cérebro desse conta do que estava ocorrendo. Antes mesmo que seus olhos vissem a imagem resultante. SéSo desfrutava destes momentos, destas horas em segundos, onde o tempo estagnava em uma névoa de sublimação sobre o ocorrido nos traços e linhas sobre o papel.

O tempo provia tempo para que seu cérebro pudesse apreciar e entender os frutos da independência dos movimentos suas mãos sobre o papel, a tela, a madeira. Era com certeza assim mesmo a verdade deste momento. O tempo parado, eternizado, para que SéSo tivesse tempo o suficiente para criar sinônimos, símbolos, paralelos, para criar significados para o surgido na abstração da surpresa eficiente entre traços seguros, entre traços inseguros, que deram forma a uma nova verdade temporal.

Sim, a ele estava claro que sua mão direita, em transe, sabia algo que iria além da capacidade racional de sua mente. Muitas vezes SéSo elaborava desenhos com sua mão esquerda para apreciar o prazer da surpresa amadora, para distrair-se com a inspiradora falta de habilidade da canhota.

No dia 22 de abril de 2022 SéSo deparara com mas uma surpresa inesperada sobre as possibilidades da comunicação entre suas mãos e seu cérebro. SéSo começara seu ritual de trabalho como sempre dando tempo para que o tempo lhe ditasse qual o passo a ser seguido. Nem sempre era eficiente como o horário definido pelo relógio em seu coração de quartzo, mas era assim que seu tempo corria. Para SéSo o tempo era medido em eventos: depois do café da manhã, depois da leitura do Jornal, depois da procura do lápis, do papel. Tudo antes do almoço, que viria com a fome, provavelmente depois de mais um copo de café.

Naquela manhã seguira o tempo nos passos que ele deveria seguir. Na procura inconsciente do formato adequado para sua idéia, da forma adequada para seus sentidos, da dimensão exigida por sua visualização. SéSo cortara vários rascunhos de papel antes de sentir-se confidente o suficiente para realizar sua idéia em forma final. Forma final, porém era um final para este momento, porque finalidade não existia em sua concepção artística. Tudo é um processo. Porém, tendo em vista a realidade econômica de sua vida artística, ele necessitava deste processo selectivo usando materiais mas em conta. Os riscos financeiros têm que permanecer calculáveis. Neste momento de distração com sua situação financeira SéSo descuidou-se com faca-alfa dando um corte de leve na copa de seu dedo mindinho da mão esquerda. Nada grave, porém desagradável.

Agora era tempo de pausa. SéSo pressionava o dedo mindinho da mão esquerda, enrolado num guardanapo, com o polegar da mesma mão. Procurara, achara e cortara um band-aid (bandeidi – pensou ele: em Portugal chamam bandeidi de pensos) cortara-o, o sangue ja não lhe causa problemas – não era coisa séria. Procurara, achara, pegara e abrira uma pomada desinfetante para colocar entre o curativo e o dedo sobre a ferida. Com a mão direita ele pressiona a pomada e coloca uma quantidade adequada, medida pela sua experiência de quem preciosa um tubo de tinta óleo, no dedo indicador da mão esquerda. E somente agora a lógica de seu cérebro da conta da impossibilidade de sua ação. A impossibilidade de aplicar a pomada na copa do indicador esquerdo na copa do mindinho esquerdo. SéSo ri sozinho, na sala vazia, abobalhado pela ingenuidade de sua mão direita, que ainda segurava a tubo de pomada aberto.

Arnaldo Túlio (ArTú)

Ein Bild ist sowohl eine Möglichkeit innerhalb einer Wahrheit, als auch eine Wahrheit innerhalb einer Möglichkeit.

FaTe

Colheita de Café

No dia nove de novembro de dois mil e dezenove, Marcelo Mendes chegara ao escritório e decidiu começar o dia de trabalho com um café. Na cozinha do escritório, a cafeteira. Diante seus olhos, a tarefa. Onze colheres de pó de café. Dallmayr, prodomo. Mas, antes de por a água na cafeteira, decidiu dar uma lavada na jarra de café térmica.

De súbito veio outra tarefa à cabeça. Necessitava de tirar fotos dos novos Dulce de Leches que recentemente chegaram da argentina e deveriam ser postos no Site para serem vendidos no Online-Shop. Ok. Vou fazer as fotografias, e, nesse entre-tempo o café vai estar maduro e eu volto ja-ja para fazer a colheita e organizar as fotos no computador e subir-las on-line. A jarra térmica ele colocou em seu lugar na cafeteira e apertou o botão de start: Feuer!

Feitas as fotos, transmitidas ao computador, lembrou-se Marcelo que o café ja deveria estar pronto.

De novo à cozinha. O peso da jarra térmica não lhe dava a informação correta sobre a quantidade de líquido acumulado em seu interior. Será? Tá leve. Ja tomaram tudo? Quem? Oi-Oi-Oi… vou ter que fazer de novo, o café? Marcelo abriu as a jarra e ela estava vazia. No recipiente com o pó, o pó estava seco. Será? Eu liguei a cafeteira e esqueci de por água?

De novo. Água na cafeteira. De novo. Jarra ready… Feuer!

Daqui a pouco farei a colheita. Nove e meia já.

Arnaldo Túlio (ArTú)